“Janeiro de 2020, um mês e meio antes do início do confinamento por conta do Covid, 13 mulheres, dos 14 aos 80 anos, formaram um grupo para descer o Rio Arapiuns dentro de um barco chamado Felipe Neto. Eram todas estranhas para mim, exceto minha filha Gabriella, de 14 anos, e Karin (minha amiga de infância que veio do Sul), que resolveram me acompanhar nessa empreitada. 

Quem tem filho adolescente sabe que há sempre questões pendentes, conversas mal resolvidas, esqueletos no armário… e estávamos em um momento desses, que tinha gerado um certo afastamento entre eu e a Gabriella. Meu filho mais velho, Pietro, estava fazendo um intercâmbio fora do Brasil,  então decidimos fazer essa viagem juntas, mas quando chegou perto e ela percebeu que ia navegar no barco das “coroas” (exceto Carol que tem 18, mas ela ainda não a conhecia), tentou desistir, literalmente abandonar o barco. Mas já era tarde. 

A aventura começou em Santarém, onde passamos a primeira noite e começamos a nos conhecer devagarinho. Na manhã seguinte, fomos todas ao colorido mercado público da cidade, para comprar mantimentos e redes, onde dormiríamos pelas próximas 8 noites. Almoço na barraquinha da Dona Dulce, um local bem humilde, mas o peixe que nos foi servido, tucunaré na brasa, seria digno de várias estrelas no guia Michelin, huuuummm!!!! 

No final de tarde, todas no barco pois, antes do pôr do sol, o Felipe Neto iria zarpar. Saímos das águas densas do Rio Amazonas e atravessamos a correnteza do Tapajós, até chegarmos à calmaria do rio Arapiuns. O Arapiuns não tem correnteza, não tem peixe, não tem ventania, só a calmaria e a imensidão do mar que não é mar, águas claras e deliciosas para diversos mergulhos ao longo do dia e da noite. Afinal de contas, nosso banho era por lá mesmo. 

Cheguei imaginando o tédio e a dificuldade que seria passar 8 dias em um barco dentro do rio, passando algumas horas do dia navegando para procurar a praia mais deserta para parar, para dormir ouvindo o som da noite, para ouvir intermináveis histórias de todas essas diferentes mulheres, cada uma carregando a sua “bagagem” nas costas, histórias de vidas, de amores, de filhos, de sucessos e fracassos, tanta coisa para contar. Depois tinha a nossa querida tripulação, o marinheiro Carlos, o capitão Junior e o querido Jayme, nosso guia local cheio de aventuras, nascido e criado na Comunidade de Anã, além da nossa maravilhosa chefe Rô e sua fiel escudeira Camilinha, que preparavam os quitutes mais incríveis que um barco poderia oferecer. E o tédio??? E aquele tempo interminável confinada em um barquinho cheio de mulheres?? Sabe que nem deu para perceber o tempo passar?? E olha que passou arrastado, mas passou de um jeito tão gostoso e tão intenso que o que a gente queria era muito mais.

De dia era muito banho de rio, caiaque para se exercitar e navegar para chegar em outro lugar. Depois, o pôr do sol. Ah!! O pôr do sol no Arapiuns!!! Um espetáculo! Onde quer que você olhasse, o céu dourava, os pássaros se calavam e a noite chegava com mais histórias para contar, jantares gostosos, jogos de buraco, aulas de alongamento, ioga, massagens com óleos essenciais, aulas de crochê… Tivemos até um show de Carimbó, comandado pela nossa menina Lygia. Poucas jovens têm a energia dessa mulher de 83 anos! Depois, cada um ia se aquietando em sua rede para ler um livro (teve noite até de poesia), aguardando o sono chegar. E, no meio da madrugada, o vento soprava forte e aquela chuva vinha com vontade lavar o barco!

Passamos por muitos lugares incríveis, a praia deserta de Icuxi, com suas areias branquinhas, como eu nem imaginava que um rio pudesse ter. A Ponta do Tororó, Caracaraí, a Cachoeira do Aruã com sua represinha gostosa de passar o dia mergulhada dentro do rio. Um dos pontos altos dessa viagem – e uma das razões pela qual se repete a cada ano – é a visita à escola de N. Senhora de Fátima que fica na comunidade de Aruã. Quem começou, e orquestra essa aventura, é a artista plástica Martha Niklaus. Ela se apaixonou por esse lugar e suas crianças e não resiste, volta todo janeiro para organizar alguma atividade lúdica por lá. Desta vez foi a horta comunitária, que implementou e fomos inaugurar. Muita emoção estar cercado de todas essas crianças lindas e sorridentes, querendo saber de tudo, mostrar tudo, uma experiência linda de viver. 

Na sequência conhecemos a Comunidade ribeirinha de Urucureá, onde vivem 50 famílias, todas envolvidas em um projeto que acabou com a venda de madeira e trouxe novas oportunidades através do artesanato sustentável. Encontramos diversas mulheres à sombra das árvores tecendo obras de arte em palha de tucumã, peças lindas e irresistíveis, todas tingidas com tintas produzidas localmente com sementes, raízes e outras plantas. O local é bucólico, silencioso e aconchegante. Chegamos lá junto com a chuva da tarde, o que rendeu ainda mais dramaticidade àquela cena tão exótica. 

Depois, chegou  hora de conhecer Alter do Chão, a mais famosa praia de água doce do país. Outro povoado muito acolhedor, mais turístico, com maior infraestrutura, pousadas, hotéis e lojinhas, sem contar com o famoso carimbó da praça central. Por lá passamos uma noite, com direito a show de sambinha no bar da cidade e visita à maior loja de artesanato indígena do país (e eu nem imaginava que produzissem tanta coisa e com tanta qualidade). Conhecemos também o produtor agroflorestal Nil Monteiro, que conseguiu desenvolver a famosa spirulina no Brasil. Ele produz também guaraná em pó e óleos essenciais, todos de forma sustentável e orgânica, sem causar danos ao frágil solo da floresta. 

Bem, voltando à filha adolescente, nem preciso dizer que foi uma das que mais se encantou com essa trip, amou cada momento, deu risada com a Ilana, fez crochê com a Lygia, ficou doentinha e foi paparicada, com seus óleos incríveis, pela Isa, pela homeopatia da Gracinha, pelos caldinhos de peixe da Rô e chazinhos mágicos da Camila. Isso sem falar nos papos deliciosos de convés com a Taninha, Silvana, Aziza (a francesa sangue bom que veio com o Bruno, seu marido que só falava francês mas todo mundo entendia o que ele queria dizer, pessoa especial), os jogos de buraco com Bia, as trapalhadas do Ricardo… E a noite de frente para a lua, conversando com a Carol até o amanhecer. Nem preciso dizer que a garota amou essa viagem, mudou seu conceito, e pré conceitos, de como é a vida secreta das “coroas” (do que vivem, do que se alimentam, o que passa pelas suas cabeças, rsrs). Nosso distanciamento se desfez e nos reconectamos, o esqueleto (que estava no armário) foi dar um mergulho no rio e voltamos juntinhas, rindo e lembrando de tudo o que tinha acontecido nesses dias maravilhosos à bordo do Felipe Neto. 

Depois de 8 noites no barco, dormindo na rede e se banhando no rio, voltamos para Santarém e fomos direto ao aeroporto, cansadas, mas já pensando em voltar para esse lugar encantador chamado Amazônia”.

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